Podia ter sido um de nós na minha família a contar isto.
Confirmo os primeiros rituais de confirmação (“ai, já não sei se fechei a porta à chave, deixa cá ir ver. A pessoa faz tudo tão automaticamente que já nem sabe às quantas anda, hihi!…“), os primeiros disparates (como por o comprimido no copo de água em vez de o tomar, por ex), as primeiras faltas de higiene…
Confirmo o avanço galopante da doença, do género de, no espaço de um ano, passar da vida perfeitamente autónoma para a necessidade de vigília constante porque seria perigoso continuar a viver sozinha…
Confirmo a tristeza crescente de quem cuida à medida que o discurso – como o raciocínio – vão sendo cada vez mais raros… Confirmo a mutação da personalidade alergre e bem disposta, sempre com uma historieta para contar ou uma músiquinha para trautear, para uma maneira de estar decsonfiada, com medo, zangada e violenta. Violenta, sim. Confirmo os ataques de fúria e o atirar-se a bater em alguém ou a si própria, com as mãos na cabeça enraivecida. Confirmo a sensação de impotência e de derrota, como quem atira a toalha ao chão por já não poder mais sacrificar a sua vida, ainda útil, pela da mãe, já condenada. E o peso da culpa. Da culpa e do preconceito. “Um lar? Nem pensar! O que seria, agora, ir depositar a minha mãe, a minha mãe!!, a pessoa que me deu vida!!, num sítio qualquer…” Confirmo a degradação das relações familiares em redor. As acusações mútuas, o estado constante de discussão latente, a falta de paciência e os maus modos, porque já não há casal, até para se ir ao café ou se vai sozinho, ou a três, já nunca a dois porque alguém tem que ficar a cuidar, a tomar conta do bebé velho que fica em casa… Confirmo o resignar, o aceitar que já não se pode mais e que o melhor é entregar a quem cuide com know how especializado. (Mas depois andar lá dia sim dia não a checkar que sim, que é bem tratada.)
Uma vez no lar, também confirmo as pequenas vitórias que eram os sorrisos e os breves e raros rasgos de lucidez (seria mesmo?). Lembro-me de lá ir grávida, muito grávida, e fazer, como sempre, por a tirar do assento e a por a andar, mas ao mesmo tempo pensar “oxalá não a deixe cair e a mim por arrasto, com o bebé dentro…”
“O estado da minha mãe [avó] piorou, começou a passar os dias deitada, e assim muito resumidamente aumentaram as noites mal dormidas, as idas aos hospitais, as infeções. Até ao desfecho final.” Podia ter sido eu a resumir. Ou o meu pai.
Às vezes, falo com os miúdos e sai-me a avó I. da boca para fora. Canto fados e músicas do antigamente, muuuuito antigamente. Conto-lhes as historietas que ela me contava e tento perceber se eles estão tão fascinados como me lembro de ficar ao perceber que houve um tempo em que não havia televisão e em que as pessoas passavam os serões em casa umas das outras a ouvir rádio e a jogar cartas ou a fazer “trabalhinhos” (costura). Só não sei as serras como ela sabia. Peneda, Soajo, Gerês, Larouca… e não consigo avançar mais na lista que ela cantava sempre com a mesma cadência, sempre com os mesmos trejeitos (seriam já as tais repetições da doença?): antes de começar, anunciava “Escuta. De norte para Sul: Peneda, Soajo, Gerês, Larouco…” e no fim ria-se, batia com as mãos nas pernas e dizia “já está! Hã? Olarilas! Todas! E antes até sabia os caminhos de ferro, que nos ensinavam na escola, mas isso já nã sê…” (porque era alentejana e, mesmo ao fim de mais tempo a viver fora de Évora do que o tempo que lá viveu, ainda dizia cheia de graça “ê nã tênho sotaqui… Tênho?!“)