Manhã cedo – ainda escuro lá fora, um escuro de cedo e de nebulosidade que tardava neste já outono – e entra a I. de mãos na cabeça, separando as frases por suspiros ofegantes e por ais.
“A minha mãe não tem telefone”
“A minha sogra ficou só com o que trazia vestido”
“O meu irmão perdeu tudo, tudo, tudo”
“Velhos, novos, homens e mulheres, anda tudo na rua sem luz, asfixiados pelo fumo, a ver o que se salva e o que já não”
“Ninguém os acode”
“O problema é o vento que traz fagulhas e a rapidez com que pega a relva a arder, a relva do jardim da casa! Como aqui as nossas!”
“Diz que há pra lá um aviário antigo – aquilo o homem já morreu e tinham aquilo ao abandono – que só se ouvia era explosões lá de dentro, pareciam bombas!”
“A maior parte são velhos”
“Cada um salva o seu, não é?, as casas vazias deixam-se pró fim, são as que vão”
“Estou aqui que não preguei olho, não se consegue falar com ninguém”
“Só [fulano] é que tem telefone e agora também não vamos estar todos a ligar pra lá, que por lá se lhe acaba a bateria e depois não tem como a carregar e não se sabe até quando é que aquilo ficará assim”
Tudo isto em discurso direto de alguém que a minha filha de 3 anos inclui nos desenhos da escola como fazendo parte da nossa família. Os meus olhos nela, a minha mente nos meus tios que também lá moram. Assim que os deixo na escola, agarro-me ao telefone. “Não é possível aceder ao número que marcou. Obrigada.” “O cliente para o qual ligou não tem voice mail ativo. Por favor, tente mais tarde.” Mas mais tarde, quando? Quando for tarde de mais?
Pensamento positivo – pelo menos até chegar à minha prima que podia saber melhor do que eu como alcançar os pais – com certeza estão só com os telefones desligados por ainda não terem acordado. Claro que não. Também a eles o fogo chegou à porta, assim dizia o site da Proteção Civil.
E, nisto, o silêncio. A distância e a incapacidade de fazer mais além de seguir com o coração nas mãos todas as fontes de informação. Quando sabemos que alguma coisa está mal, ao menos sabemos e por isso podemos agarrar-nos ao que há para fazer, perguntar “ok, próximo passo?” e partir dali para melhor. Mas quando não se sabe nada… Quando não há comunicações, quando os últimos posts dos perfis de facebook são de há 18h com vídeos do fogo às portas, quando queres ligar mas não tens para onde, quando não sabes nada de nada, a cabeça pode pensar o que quiser. Imaginas o fumo denso que não deixa ver e não deixa respirar. O fumo sem o qual não há fogo. Havendo fumo… e estando ele dentro dos corredores da nossa casa… é um nó na barriga, uma sensação de impotência, uma calma de morte.
Não se admite um discurso como o da Ministra da Administração Interna ou o do Primeiro Ministro. Não se admite, depois de Pedrógão Grande, ouvir os mesmos responsáveis sacudir água do capote e, gozando, dizer que não podemos ser infantis e que temos é que nos tornar mais resilientes às catástrofes – por outras palavras “deixem-se de pieguices”, lembras-te de ter caído o Carmo e a Trindade em cima de Passos Coelho por uma frase de sentido semelhante, a propósito de muito menos que este terror?
Já falei com os meus tios e, quanto aos meus, está tudo bem. Quanto a todos nós, parece-me cada dia mais óbvio que esta geringonça não nos cuida.
Comentários à parte quanto à “geringonça”, e numa altura em que “o diabo veio mesmo e andou à solta”, apenas para corroborar o sentimento de solidão de cada um de nós no meio disto tudo. Os golias que se adensam no ar e na terra e a falta de comunicações. Tudo prova a nossa suprema fragilidade. À distância, a ausência das vozes umbilicais deixa-nos em suspenso. Depois, as notícias de amigos, um chorando e outro extasiado por uma noite em claro… e outra ainda em viagem, tentando chegar ao local porque a sua casa ardeu. As palavras rápidas para animar, renovando a nossa capacidade de acreditar que tudo se irá compor. Estamos vivos e salvos. As nossas coisas estão salvas. O pior já passou. Mas o fumo que suja os dias interpela os nossos olhos. Que pedem chuva (sem tempestades) e não lágrimas de ninguém.
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O teu post era impensável depois do que já se passou este ano. A manhã foi em suspenso. Mas, depois, ouvir a voz dos que mais gostamos, dizendo que tudo está mais calmo, dá-nos o que ansiavamos.
É difícil perceber. Há “Neros” à solta a imperar…http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-10-16-Incendios.-Comandante-nacional-e-o-mesmo-que-eliminou-dados-da-fita-do-tempo…
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Inacreditável. É uma coisa que repugna…
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