Quem pode, deve.

O artigo 33º do Código do Trabalho diz assim:

Artigo 33.º
Parentalidade
1 — A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes.
2 — Os trabalhadores têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação ao exercício da parentalidade.

A partir daí, é toda uma subsecção da Lei dedicada à parentalidade, à proteção da maternidade em especial e da parentalidade genericamente falando, e ao incentivo à natalidade, tanto quanto ao fim de 40 anos de democracia se conseguiu fazer neste país.

Eu bem sei que a maior parte das pessoas (mães e pais, tenta abstrair-se da distinção de género neste post, que não é isso o relevante aqui), trabalham mais horas do que o que deviam, por muito menos salário do que seria o justo, num mundo de trabalho canibalesco, em que a quem não sucumbe é mostrada a porta da rua porque haverá sempre mais quem se preste ao mesmo por menos dinheiro.

Eu bem sei que a maior parte das pessoas tem que decidir se goza 4 ou 5 meses de licença de maternidade inicial com base no impacto que isso causará no orçamento familiar e não apenas no benefício que isso trará ao seu bebé, a si e à sua família.

Eu bem sei que a maior parte das pessoas nem sequer sabe que tem à sua disposição até mais 3 meses de licença complementar e que, mesmo para quem sabe que isto existe legalmente consagrado como um direito, simplesmente não é uma opção porque não lhes cabe na cabeça estar ausente do seu posto de trabalho mais do que o tempo inicial que, mal ou bem, lá vai estando enraízado neste mundo de trabalho canibalesco e lá vai sendo tolerado como um direito. Mas é tolerado; mais que isso seria um abuso e mal visto.

Eu bem sei que, mesmo sabendo da licença complementar e querendo-a muito, a maior parte das pessoas não pode viver apenas com um quarto do seu salário durante três meses.

Eu bem sei que a maior parte das pessoas abdica do horário reduzido que a lei consagra durante o primeiro ano de vida das crianças. Quanto mais prolongá-lo para lá do ano para amamentação prolongada…

Eu bem sei que a maior parte das pessoas desconhece que pode informar (isenta de necessidade de autorização) a entidade patronal que vai trabalhar apenas meio dia durante 12 meses para assistir aos filhos menores de 6 anos. E que pode pedir para fazer o mesmo, durante 24 meses, para assistir a filhos menores de 12. E que, sabendo, não equaciona essa hipótese porque, lá está, é mal visto, não parece bem, no pior dos casos, era coisa para serem despedidas.

Eu bem sei que tenho a sorte e também a capacidade de gestão (a bem dizer, sou uma fona desde miúda e gosto de amealhar, já to disse! :)) que me permitem ter uma vida confortável, graças a Deus, em que posso gozar cada um dos direitos que a lei me dá sem ficar desfalcada.

Eu também sei que tenho a sorte de trabalhar num sítio onde mal visto seria despedir-se alguém por querer ver cumprida a lei no que diz respeito aos direitos sobre a parentalidade e, por isso, dificilmente me despediriam por os fazer valer. E que isto não é o comum.

Mas, dito isto, olha que também não é com uma palmadinha nas costas que se despedem aqui de mim para ir de baixa ter um filho “adeusinho, até pró ano”. Com certeza que ainda faço parte das pioneiras nisto do derrubar barreiras e com certeza que as amnésias das mulheres as fazem olhar-me de soslaio – somos umas cabras umas para as outras, é uma tristeza. Dos homens acho mais difícil porque se estão nas tintas. As mulheres é que vivem a vida alheia e fazem considerações sobre tudo e nada mais ou menos informadamente.

Por isso, com a consciência de que serei uma privilegiada por não ter que contar os tostões nem por temer pelo meu posto de trabalho, e com a consciência de que sou só uma em 11 milhões, faço questão de gozar todos os direitos que a lei me dá. Não só em meu nome e da minha família, mas também pelos legisladores todos que há 40 anos se andam a debater para ver estas pequenas coisas consagradas como direitos no nosso contrato social, por respeito ao seu trabalho, para provar que não foi em vão e que há quem de facto faça gozo dele (e oxalá sejamos cada vez mais) e também em nome de quem não o pode fazer, seja porque não tem dinheiro para isso ou porque não se pode dar ao luxo de perder o emprego, assumo isto como um lema: os meus direitos são os meus deveres também – se posso, devo.

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