“Estado de graça”

Estou grávida de 22 semanas com uma barriga de 10 meses. Tenho cá fora um filho de três anos e meio e uma filha que ainda não tem dois. De quem trato sozinha todas as manhãs e ao fim do dia com ajudas porque já não consigo. Aqui, o verbo “tratar” significa:

  • acordar com miminhos, acocorada sobre eles nas camas deles, em absoluta contraindicação para o que é melhor para o bebé na barriga;
  • pegar ao colo (um com 17kg, a outra com 10kg) para gerir birras de sono, subir ou descer escadas, subir E descer escadas, ou simplesmente para ficarem à altura do lavatório para lhes lavar os dentes;
  • acocorar-me para calçar sapatos (várias vezes na mesma manhã)
  • dar vinte voltinhas entre as divisões da casa para apanhar o laço que ela atirou ao chão, para ir buscar os casacos, para apressar o ter ido buscar o brinquedo que vão levar para a escola, preparar os pequenos almoços deles (o meu fica para depois, também em claro prejuízo do Frederico) e alimentá-los (o que também implica más posturas)
  • ajoelhar-me e ignorar que fico a meio metro da borda da banheira, inclinar-me toda para a frente e fazer força abdominal (e as médicas que não me leiam porque isto chega a roçar o criminoso para o bebé na barriga) para lhes dar banho
  • pegar ao colo, 17 e 10kg, para tirar da banheira, com o bónus dos esperneanços e consequente desequilíbrio e mais força abdominal, porque nunca querem sair do banho
  • dar miminhos e vestir pijamas várias vezes (porque a Júlia acha que já se sabe vestir sozinha e reclama por não ser ela a enfiar as pernas nas mangas do pijama e por isso desabotoa-se toda qaundo eu só ia ali buscar o pente, por exemplo)
  • brincar a tudo no chão: acocorada para por carrinhos a deslizar, deitada de costas (barriga para cima, Frederico, sim, filho, desculpa outra vez!) para fazer cavalinho com ela; de lado se estiver a contar uma história; com as pernas à chinês se for para os ter ao colo
  • dançar a coreografia d”o Areias é um camelo” como os Caricas
  • ajoelhar e, de mãos dadas com um de cada lado, balançar para lá e para cá, abraçando-nos e beijando-nos, para fazer o “eu adoro-te!, tu também!, uma família como não há quem, com um grande abraço e beijinhos que coram, digam vocês que me adoram” do Barney
  • agachar-me a um metro do chão para os convencer a irem para a mesa; pegar ao colo 17kg quando já não consigo negociar mais e 10kg invariavelmente porque ela não trepa sozinha para a cadeira de comer
  • girar o tronco repetidamente à esquerda e à direita com a necessária força abdominal (Frederico, filho… vai correr tudo bem, tranquilo!) para dar a comida ora a um ora a outro e, enquanto mastigam, engolir eu a minha
  • levantar-me e empoleirar-me ou agachar-me consoante seja preciso uma taça, um tupperware, aquecer as sopas, ir buscar mais guardanapos, descascar a fruta
  • ir atrás do Manel (várias vezes por refeição) que aproveitou o eu sair da mesa para sair também
  • acocorar-me sobre ele na sanita para lhe limpar o rabo, enquanto com um pé a tento afastar a ela, que gosta de ver tudo o que se passa DENTRO da sanita enquanto a ação está a acontecer
  • mais voltinhas para deixar as roupas prontas para o dia seguinte enquanto procuro controlar os disparates que vão fazendo largados à sua imaginação
  • inclinar-me para dentro da cama de grades dela e sobre a cama baixinha dele para abrir os lençóis e ajeitar os bonecos e as almofadas
  • agachar-me e inclinar-me sobre ele já deitado para rezarmos ao Jesus e dizermos “boa noite. Amo-te, Manel/Amo-te, mamã.”
  • sentar-me sobre uma almofada que já foi mais espessa e que agora parece só um feltrozinho entre o meu rabo e o cadeirão de verga e adormecê-la a ela ao meu colo

E isto nos dias bons e com mais dois braços e a capacidade de negociação e entretenimento de outro adulto! E já não apanho coisas ou comida que cai ao chão e também já não quero saber se arrumaram os brinquedos antes de se irem deitar, porque isso implicaria mais umas voltinhas minhas e, no absurdo, o voltar a agachar-me eu para os ajudar e ser mais rápido. E a lista não é exaustiva.

Faltam quase outras tantas semanas de gestação com o desejável aumento da barriga.

Quando os deixo na escola de manhã, venho aqueles 15 ou 20 minutos de carro a procurar posição porque, com 10kg extra em cima de mim, tenho uma dor constante no cóccix. No escritório vou alternando, ora sentada sobre a bochecha do rabo do lado direito, ora sobre a do lado esquerdo. No carro não dá, tenho que ir sobre o cóccix mesmo. À tarde, no regresso, como há mais trânsito, já são pelo menos 20 minutos nisto, normalmente 40.

A natureza do meu trabalho implica-me sentada em frente a um computador o dia todo. Devo fazer 7h12m por dia, num total de 36h por semana. Procuro levantar-me sempre, esticar as pernas e já não abdico do apoio de pés. Mas a cadeira é giratória (menos estável e, se pensares nisso, mais força abdominal), a dor no cóccix cá está, assim como as pernas a 90º a maior parte do tempo por muitas voltinhas que procure dar. Caminho com passinhos pequeninos porque a trepidação já me faz muita impressão, demoro a levantar-me porque preciso primeiro de encontrar a posição que menos me faz doer as costas e acuso sempre a ciática no lado direito. Se sinto que estou prestes a espirrar, ponho as mãos na barriga para a apoiar ou, se estiver de pé, levanto uma perna para minimizar o impacto (’tás a ver as anedotas dos exageros nas cirurgias plásticas? assim sou eu! se espirro levanto uma perna :D). Custa-me respirar e para ter uma simples conversa (sem ser defender uma opinião mais acerrimamente ou discutir!) fico a arfar ao fim de meia dúzia de frases seguidas. Chego ao fim das 7h12 invariavelmente com dores lombares, com a postura toda inclinada à direita, pernas, mãos, olhos e boca inchados, o sangue a latejar pelas barrigas das pernas abaixo. Sinto o meu próprio odor corporal e a barriga contraída com aquela impressão de pele esticada no umbigo (ainda não vejo estrias, yesss!! sempre achei que à terceira seria de vez mas Nosso Senhor tem sido meu amigo ;)). E assim me meto na tal meia hora de trânsito até casa, pronta para me lançar a eles e à lista das más posturas acima.

Não me queixo de nada disto. Nunca. Quando me perguntam “então como é que isso vai?”, respondo sempre com um sorriso “bem, bem, graças a Deus.”, orgulhosa de mim e do meu bebé. Nem às médicas consigo reproduzir tão fielmente isto que aqui te acabei de detalhar.

Por outro lado, eu nunca tive enjôos matinais, náuseas, azia, desejos ou fome ou sono a mais. Já tive cãibras e insónias e é óbvio que sinto um cansaço descomunal. Mas continuo a achar que o saldo é positivo e que, pesadas as coisas, isto até me corre de feição, sou boa nisto de ter bebés! Mas que se desengane quem acredita na expressão “estado de graça”; graça é coisa que não tem!

Hoje deu-me para detalhar todos os meus… vá, desconfortos. “Desconfortos” porque, lá está, continuo a ter a lucidez de não me vitimizar e sei perfeitamente que, grave, grave é um descolamento de placenta ou um problema com o bebé ou as contrações que sinto virem acompanhadas de dor. Nada disso se passa comigo e tenho um marido que faz tudo tão bem ou melhor que eu e as avós a ajudar nas logísticas de fim de dia. Mas por melhor que me sinta e por melhor que queira parecer a quem comigo se cruza, na verdade eu estou ESTAFADA. Não é à toa que há caixas prioritárias e até já exclusivas para grávidas e outros incpacitados nos supermercados. Não é à toa que existem lugares dedicados nos parques de estacionamento mais ao pé das saídas. Não é à toa que se faz legislação de promoção da natalidade e de proteção à parentalidade.

Não posso explicar melhor do que isto porque é que hoje me sinto tão triste. Ontem senti uma falta de compreensão absurda para com isto do “estado de graça” e ainda não me recompus. Ainda não acredito que não estava só a lembrar a origem do direito à prioridade na tal fila do supermercado à típica tontinha que ta recusa com um ridículo “você sabe lá se eu não estou grávida também!”, estava a falar com alguém esclarecido, letrado e informado. Mulher. Mãe também. De dois, ainda por cima com a mesma (pouquíssima) diferença de idades que os meus. Na mais perfeita amnésia do que é tudo isto da lista acima… triste e desconsolada, só.

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