O caso do livro rasgado

Na sexta-feira passada, ao chegar à escola para os ir buscar, encontro a pequena M. num pranto à entrada. “Então, M., o que se passa?”, perguntei eu. Ela nem respondia, só soluçava. Diz-me a mãe dela “ah, prepara-te, que isto é com o teu filho também” e interrompe-a uma outra miúda “a M. e o Manel rasgaram o livro da B.Costa!” A M. chorava de rermorsos, portanto. Diz-me a mãe, otimista, “chegas lá dentro e encontras o teu filho assim também, vais ver!” e eu “huuum… não me parece!” :D
Comigo vinha a mãe da B.Costa que levou logo a mão ao peito “será a minha? ela, realmente, hoje trazia um livro do Bambi…” e eu, um bocadinho aliviada, “pronto, ao menos conheço a mãe da vítima, desde já apresento as minhas desculpas em nome do meu filho!” :) e lá fomos escola a dentro, curiosas para ver como é que os encontrávamos, eu ao culpado, a R. à filha vítima. Era assim o primeiro grande disparate dele, estaria de facto a chorar ou triste a um canto?

A meio do corredor, vem de lá a C., filha da minha amiga Bi, aos gritos a denunciar “o Manel rasgou o livro da B!” Era todo um caso escolar, portanto, o caso do livro rasgado! Toda a gente, desde os meninos da sala deles até ao primeiro ciclo (que era o caso da miúda que estava com a M.), passando pelos do jardim de infância (como a C.), toda a gente sabia que o Manel tinha rasgado um livro, o livro da B.Costa (é adorável como eles, nestas idades, falam dos amigos com apelidos, não é?)! O pequeno delinquente estaria em apuros, seguramente!

Achas que estava? Achas mesmo que estava a soluçar cheio de remorsos como a M.? Claro que não! Encontrei-o cabisbaixo e comprometido, sim, mas não contou voluntariamente o que se tinha passado. Nem, tão-pouco, mo contou quando lho perguntei. Fui eu buscar o que restava do livro e, bom… vou-te dizer: nunca tinha visto um Bambi assim! As folhas estavam arrancadas uma por uma, o Bambi sem orelha numa delas, sem rabo noutra… Acho que nunca vi um livro tão mal tratado. Eles, claramente, estiveram entretidos, na verdadeitra aceção da palavra, enquanto ninguém deu com aquilo, a tirar uma por uma as folhas ao Bambi! Foi o entretém da M. e do Manel, pronto. Coitadinha da B….

A M. já tinha tido o seu “castigo”, que chorava copiosamente com o peso do remorso. Mas e o meu? O que é que eu fazia ao Manel? Faço sempre questão que, mais do que pedir desculpas, ele se preocupe com o outro e verifique como se sente e se está tudo bem no fim. E ele vai fazendo isso. Vai pedir desculpa e pergunta “já não estás triste, não?” ou “o que se passa?” – que é uma expressão muito minha, adoro ouvir-me nele! – todo inclinado sobre um amiguinho ou sobre a irmã. Na sexta-feira, ainda por cima, foi logo com a B.Costa, que é mesmo sua compincha, tenho a certeza que lhe custou quando se apercebeu do que tinha feito e a quem. Lá veio o discurso de moralização, pois claro:

– “Manel, tu não sabes que os livros não são para estragar?”

– “sim, seeeei…” *com os olhos no chão*

– “E tu não sabes que, com ele assim, não se pode contar a história? Olha lá para este Bambi, coitadinho, sem orelha! Como é que ele vai ouvir a mãe chamar por ele?! [sou um bocado dramática, eu sei!] Porque é que tu fizeste isto?”

*silêncio*

– “Quem teve a ideia de rasgar as folhas?”

– “Fui eu.” (tão querido, o meu inocentezinho… ainda não tem perversidade nenhuma, ainda não escolhe mentir *derretendo-me*)

– “Oh Manel, mas e a B.? Como é que ela estava quando viu o que aconteceu ao seu livro?”

– “Estava aflita…” *e outra vez de olhos no chão*

– “Pois com certeza que devia estar, coitadinha. Ela emprestou-te o livro ou foste tu que tiraste?”

– “Emprestou…”

– “Estás a ver? Achas justo? A B. emprestou-te o livro e tu, em vez de veres a história, rasgaste-o. Estragaste-o. Não está certo, pois não? Isso deixou a B. muito triste, não deixou? Ela estava a chorar?”

– “Sim, estava…”

– “Então vamos mesmo fazer como a S. diz [a auxiliar da sala dele] e no fim de semana preparas um desenho para dar à B. na segunda-feira para lhe pedires desculpa, o que é que tu achas?”

– “Siiim…”

(Além disso, disse-me a S. que já tinha estado a conversar com eles no tapete – é tipo a Ágora na Atenas Antiga: os meninos reunem-se no tapete para debater os temas prementes da atualidade da sala! – e que já tinham combinado que o Manel e a M. teriam um trabalho para fazer na segunda-feira, que era compor o livro da B. Costa. Achei bem. Quem estraga, arranja.)

Melhor que a encomenda, quando chegámos cá fora estava ainda a minha amiga R., mãe da B. Costa, com as filhas no recinto da escola. “Olha, Manel, olha quem está ali.” e ele disse logo com entusiasmo “É a B.!”. Podia ter vergonha de a encarar, mas não, senti-o feliz pela oportunidade de resolver a questão logo ali. Rijo, não soluçava como a M., mas, sensível, ficou feliz por poder resolver os remorsos depressa. “Queres ir lá ter com ela, tens alguma coisa para lhe dizer?” mas eu mal lho tinha sugerido e já ele estava empoleirado no muro que os separava a dizer-lhe baixinho “B., desculpa…” Ela, que não o ouvia, dizia de lá, queixosa “O Manel rasgou o meu livro!” e aí as mães intervieram para os aproximar a uma distância a que já ela pudesse ouvir as desculpas dele e ele pudesse ouvi-la dizer que o perdoava.

Fomos de fim de semana com a consciência tranquila. Mas ele fez mesmo o desenho para levar à B. e foi, com todo o jeitinho, ontem, colocá-lo entre as folhas do livro já recompostas para dar à B. Costa.

:)

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