A avó S. era matriarca. Não são todas as famílias que têm uma matriarca ou um patriarca, mas a minha tinha. Era a avó S. Ela era infantilmente “a mamã” da minha mãe e tios, era respeitosamente a “Dona S.” para as noras e genro, era uma das minhas duas avós, foi a única avó da minha prima P. e foi outra mãe para a minha prima S. Dos primos mais novos, mutilados dela pela distância, receio que tenha sido só a avó que morava longe.
Para mim, a avó S. era a que nos contava a história da abelha Maya e da cigarra Cassandra que eu estou em crer que foi inventada por ela – Deus me livre de um dia dar com um episódio da Maya com uma Cassandra no youtube e perceber que afinal não.
Era a avó que cuidava de três nas férias de verão. Era a ela que pregávamos partidas e ela corria atrás de nós pelo jardim, à volta da casa e dos canteiros, ela ralhando e nós rindo, todas correndo! A avó S. punha cães e rapazes de 13, 14, 15 anos que iam atrás da minha prima S. a andar dali pra fora com o mesmo despacho, assertiva e pouco se importando se eram queridos e inofensivos – “mas avó, coitadinho, o cãozinho só queria festinhas, por favooooor!…” ou a S. “Avó!!! Que horror! Agora o que é que vão pensar na escola?!”
A avó S. conduzia. Tenho poucas memórias dela ao volante, mas lá estava o carro dela na garagem como prova de que aquela mulher “velhota” (que é como uma pessoa de 50 anos aparece a uma criança de nem 10) fazia coisas aguerridas que as outras mulheres da sua idade não faziam. Eu não conhecia mais nenhuma mulher da idade da avó S. que conduzisse. Mas também se metia num taxi (conhecia os taxistas todos), num autocarro (pedia aos motoristas pequenas ajudas com as encomendas que levava consigo ou com o destino), num comboio ou num avião, sozinha, para ir atrás de algum dos três filhos. Super ágil, uma fura vidas, metia-se nelas por impulso e daí para a frente já nada a parava. E mesmo os motoristas e maquinistas a respeitavam e obedeciam aos seus pedidos. Era verdadeiramente uma matriarca. Sempre a conheci viúva (sempre de preto carregado) e sempre com esta vivacidade de quem leva tudo sozinha às costas: família de três, depois multiplicados, contas no banco, negócios e heranças… Isto é que fazia dela a matriarca, eu acho. O faltar o meu avô (que, no entanto, sempre esteve, imponente, num retrato a preto e branco na sala de jantar da casa – “A casa”, repara, é toda uma simbologia!) e o ser a ela que tudo e todos respondiam.
A avó S. parecia muito mais velha do que era. Sempre de preto, até na roupa interior, era rigorosa com a sua higiene. Lembro-me de a observar em todo o seu ritual de água, cremes (usava a pasta medicinal Couto) e lacas. Apertava o longo, muito longo, cabelo preto num carrapito que prometeu nunca cortar antes que uma das netas se casasse. Não cumpriu a promessa porque os tempos já não eram os dela e os casórios tardavam. Quando, aos vinte e todos, a minha prima S. se casou, já a avó exibia um penteado escadeado em vez do carrapito há muitos anos. Ficava muito mais gira!
Falava baixinho, comia bem, gostava de vinho e ria-se aos is. “Hihihihihihih”. Teve Parkinson e não suportava viver sem a agilidade de sempre. Resistiu muitos anos, muitos. O ano passado não resistiu mais. Mas, matriarca que era, deixou-se estar na cama do hospital já sem forças, com os órgãos todos a falhar, um a um, lentamente, até que a semana fosse passando e o fim de semana se fosse aproximando para que pudéssemos todos deixar para trás os afazeres dos escritórios na capital e nos fossemos juntando nA casa. A minha mãe e os irmãos já lá estavam, a minha prima S. voou para cá e na sexta-feira subimos eu e a minha prima P., eu com a Júlia com um mês. 33°C no interior do nosso país. E a família toda reunida porque os médicos diziam que não sabiam como é que ela estava desde o início daquela semana a resistir.
Chegámos perto da meia noite. O estarmos juntos, pese embora a tristeza, alegrou-nos a todos. Parecia que era um verão dos da minha infância outra vez… Despedimo-nos uns dos outros com dois beijos na cara e um último na testa, como só fazemos entre nós, qual clã, e de manhã organizaríamos as visitas no hospital. Não foi preciso. O telefone tocou cedo e a avó não precisou de todos lá com ela, ela só precisou que nós nos tivéssemos reunido todos. Matriarca e elo de união até ao fim, estou mesmo convencida que, mesmo não tendo esperado por me ver, sabia que eu já lá estava com a minha bebé recém nascida (que não chegou a conhecer, portanto) e então decidiu que podia largar-se da vida. Esperou que a família toda se reunisse na casa para poder ir.
Fez hoje um ano. Querida avó S., que estás a ver aí de cima eu a enrolar-me toda a tentar contar aos meus filhos a abelha Maya e a Cassandra e a rir-te aos is de mim de certeza…
Que lindo texto!!! Sei que está a rir-se, orgulhosa! :*
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Tão bonito Coelha… um beijinho*
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sou a do meio (quando ainda eramos só três; e mesmo depois, continuei a ser a do meio. a que nasceu quando o Avô falecera há nem um mês. A que dizia à Avó “na chola não?!”, quando a via a tentar fintar as lágrimas na lembrança metalicamente cortante daquele Homem magnífico que um dia se quedou de amores por si.
A Avó S. é a pessoa mais destemida que conheci. Não tem medo de nada e sobretudo, de ninguém. Com a pele de pêssego (cujo bálsamo tem de nome “Bênamor”), enfrentou o destino com o olhar fito na certeza que nada pode ser tão grave que não se resolva. Lutou até ao fim, numa agonia que ninguém entendeu. Mas foi isso, com uma força gregária única, chamou a si todos e quando todos se juntaram, sentiu que podia enfrentar essa passagem desconhecida. e foi. estava impávida nessa última memória. beijei-a como sempre, com o beijo na testa que destacaste.
Continua viva, nos sorrisos, nos espirros (sempre em grupos de 7), nas frases certeiras ao estilo de sínteses de epopeias. Nunca se deteve perante um perigo, um desafio, uma autoridade. Fosse quem fosse, fosse o que fosse… o nome diz tudo, marcou pela diferença, pela bravura, pela personalidade fabulosa (que não deixava ninguém indiferente).
na forma como a descreveste, tocaste muitas coisas: os lanches, as férias de Verão, as saladas frias, os mazagrans, os filmes de terror, essas estórias fabulosas da abelha Maya e da Cassandra; a dos coelhinhos (sim, foi premonitório para ti:):)); a roupa velha no Natal; as prendas para as netas (os chorões vindos de Fuentes de Oñoro) e tantas outras. A imagem “à la pide” (quando, à noite, se escondia, às claras, atrás da cortina, para ver como paravam as hostes, vulgo,as suas netas e os amigos) na avenida; quando nos levava à escola em 2.ª no Fiat 124 branco, e a S. se encolhia toda e eu me enrolava de gargalhada no assento de trás; os recados que me mandava fazer “à Vila”; o fino e os camarões nos finais de tarde, na esplanada na Figueira da Foz;; e a seguir, o stagus que lá tinha de ser tomado por causa da vesícula:); as cabeças de peixe e as de cabrito, que desmanchava com a mesma agilidade com que desmanchava os nós dos argumentos das testemunhas de Jeová que lhe batiam à porta. E como se alegrava quando todos nos juntávamos. Os doces que nunca lhe fizeram diabetes, e aos quais não resistia, assumidamente. e colesterol era coisa que não sabia.
A Matriarca que foi a primeira mulher a tirar carta de condução lá na nossa terra; que foi com a sua Mãe até Lisboa, em nova, e aí deixou o seu primo completamente apaixonado por ela. Olhos verdes, nariz malandro, estatura baixa (à guisa do ditado “mulher portuguesa, quer-se pequenina como a sardinha”); mulher que manteve o brilho das “Madames” dos anos 50 até hoje. Fez tudo sozinha; enfrentou manos com a mesma garra com que os acolheu; assim como aos sobrinhos. Gémea de irmã que morreu com dias, parece ter arrecadado e reinventado em si a força de duas, como gato que tem 7 vidas. E foi isso mesmo. Numa só vida, teve muitas vidas. Fez-se ao mar e foi à aventura, em África, no Canadá, sem nada previamente tratado e sempre venceu. E fez amizades que vão para lá dos laços de sangue. Até bem tarde, teve sempre histórias que desconhecíamos e que nos enlevavam na magia dos contos de crianças ou de obras primas do Eça. Como o seu amor de Póvoa de Lanhoso, que literalmente morreu de amores por si ainda novo.
Os seus filhos, a multiplicação dos seus amores e força, que nunca deixou, e que foram o motor para mais um recomeçar, após a morte do Avô. Os seus filhos que docemente a chamam de Mamã, sempre. Os netos que a chamam “Vóoo”, como gaiatos feitos gatos em redor das pernas da dona.
É a nossa Avó. que com a 4.ª classe falou francês, se dirigiu a ministros na altura “da outra senhora” e que num caso até “ditou”, a um deles, sugestões de acção quando o que estava em causa era um dos seus filhos. queria ter sido espia ou da PJ mas foi costureira, modista, cabeleireira. Exigente com o corte (o comprimento do cabelo não podia passar abaixo do lóbulo da orelha), a laca que mantinha intocável as ondas do cabelo; os dedos mindinhos que não conseguia esticar na totalidade; as unhas perfeitas; a afronta que lhe fazia o calor… porque a Mãe lhe morrera nos braços num dia de calor brutal. a que já decidira há muito a roupa que levaria para a passagem eterna, escrupulosamente escolhida e combinada, incluindo uma mantilha preta e prateada, linda. não cabe nas palavras.
sinto-a viva. muito viva. S. de saudade mas também de sempre.
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